Categorias
Matemática em Geral

O Teorema de Picard-Lindelöf

No post anterior, foi demonstrado o Teorema do Ponto Fixo de Banach, que garante a existência e unicidade de pontos fixos para contrações em espaços métricos completos. Agora, façamos uso desse resultado para demonstrarmos o célebre Teorema de Picard-Lindelöf (ou Cauchy-Picard), que estabelece a existência e unicidade para Problemas de Valor Inicial:

(Picard – Lindelöf) Fixemos qualquer norma \| \cdot\| em \mathbb{R}^n, e sejam \varepsilon > 0, n \in \mathbb{N}, r > 0 e (t_0,\,x_0) \in \mathbb{R} \times \mathbb{R}^n.
Seja f \colon [t_0 - \varepsilon,\,t_0 + \varepsilon] \times B[x_0,\,r] \longrightarrow \mathbb{R}^n, em que B[x_0,\,r] denota a bola fechada de centro x_0 e raio r, lipschitziana na seguna variável, ou seja, \| f(t,\,x_1) - f(t,\,x_2)\| \leqslant L\,\| x_2 - x_1\|, para algum L > 0 e para todos x_1,\,x_2 \in B[x_0,\,r] e t \in [t_0 - \varepsilon,\,t_0 + \varepsilon]. Dessa forma, o PVI

\begin{cases} x'(t) = f(t,\,x(t)) \\ x(t_0) = x_0\end{cases}

admite uma única solução x \colon [t_0 - \varepsilon',\,t_0 + \varepsilon'] \longrightarrow B[x_0,\,r], para algum 0 < \varepsilon \leqslant \varepsilon.

Demonstração: Sendo f contínua, sabemos que ela é limitada.
Definamos, então, K \doteq \sup\left\lbrace  \| f(s,\,x)\| \colon (t,\,x) \in [t_0 - \varepsilon,\,t_0 + \varepsilon] \times B[x_0,\,r]\right\rbrace , e coloquemos \varepsilon' \doteq \min  \left\lbrace \varepsilon,\,\frac{r}{K},\,\frac{1}{2L} \right\rbrace, o que ficará claro logo mais.
Consideremos o conjunto Q das funções contínuas do tipo y \colon [t_0 - \varepsilon,\,t_0 + \varepsilon] \longrightarrow B[x_0,\,r], na métrica
d(y_1,\,y_2) =  \| y_1 - y_2 \|_\infty  = \sup\limits_{t_0\,-\,\varepsilon'\,\leqslant\,s\,\leqslant\, t_0\,+\,\varepsilon' }  \|  y_1(s) - y_2(s)\| .
Utilizaremos o resultado de que um subconjunto fechado de um espaço métrico completo também é completo no que segue, de forma que (Q,\,d) é completo. Seja, então, o operador

\mathcal{L} \colon Q \longrightarrow Q \\ \mathcal{L}(y)(t) \doteq x_0 + \displaystyle\int\limits_{t_0}^t f(s,\,y(s)) \, \mathrm{d}s.

Sabemos, do Teorema Fundamental do Cálculo, que \mathcal{L}(y) é uma aplicação uniformemente contínua, para todo y \in Q. Com isso, para t \in [t_0 - \varepsilon',\,t_0 + \varepsilon'], temos
\lVert\mathcal{L}(y)(t) - x_0\rVert = \lVert \displaystyle\int\limits_{t_0}^t f(s,\,y(s)) \, \mathrm{d}s \rVert  \leqslant \displaystyle\int\limits_{t_0}^t \lVert f(s,\,y(s))\rVert  \, \mathrm{d}s \leqslant K \displaystyle\int\limits_{t_0}^t\, \mathrm{d}s
\leqslant K\,\lvert t - t_0\rvert \leqslant K\,\varepsilon' \leqslant r, o que verifica que \mathcal{L}(y)(t) \in Q.

Agora, para verificarmos que \mathcal{L} é contração, temos, para y_1,\,y_2 \in Q, que
d( \mathcal{L}(y_1) ,\, \mathcal{L}(y_2)) = \lVert\mathcal{L}(y_1)(t)\, - \,\mathcal{L}(y_2)(t)\rVert_{\infty} =  \lVert \displaystyle\int\limits_{t_0}^t (f(s,\,y_1(s)) \,-\, f(s,\,y_2(s))\, \mathrm{d}s \,\rVert _{\infty}
\leqslant \displaystyle\int\limits_{t_0}^t \lVert  f(s,\,y_1(s)) - f(s,\,y_2(s)) \rVert _{\infty} \,\mathrm{d}s \leqslant  L\displaystyle\int\limits_{t_0}^t \lVert  y_1(s) - y_2(s) \rVert _{\infty} \,\mathrm{d}s
\leqslant  L\,d(y_1,\,y_2)\,\lvert t - t_0 \rvert \leqslant L\,\varepsilon'\,d(y_1,\,y_2) \leqslant L\,\frac{1}{2L}\,d(y_1,\,y_2) = \frac{d(y_1,\,y_2)}{2}.
Dessa forma, cumpre-se que d( \mathcal{L}(y_1) ,\, \mathcal{L}(y_2))  \leqslant 1/2 \, d(y_1,\,y_2) e \mathcal{L} é contração.

Enfim, pelo Teorema do Ponto Fixo de Banach, \mathcal{L} admite um único ponto fixo x \in Q para o qual x(t_0) = x_0, como queríamos. □

Referências:
Fundamentos de Análise Funcional, de Botelho, Pellegrino e Teixeira,
Equações Diferenciais Ordinárias, de Claus Ivo Doering e Artur Oscar Lopes,
e Espaços Métricos, de Elon Lages Lima.

Publicidade
Categorias
Matemática em Geral

O Teorema do Ponto Fixo de Banach

Consideremos um espaço métrico (X,\,d), completo, e seja A \colon X \longrightarrow X uma aplicação.
Chamamos A de contração quando existir K \in [0,\,1) tal que d(A(x),\,A(y)) \leqslant K\,d(x,\,y), para quaisquer x,\,y \in X. Observemos que contrações são Lipschitzianas e, portanto, contínuas no sentido clássico.
Desejamos investigar a existência de pontos fixos para A, ou seja, a existência de algum \xi para o qual A(\xi) = \xi, e também indagar sobre questões de unicidade. Pois bem, o resultado que responde tais questionamentos é o que dá nome a postagem.
Creditado a Stefan Banach, o teorema estabelece que contrações admitem um, e apenas um, ponto fixo. Além disso, dado qualquer x_0 \in X, o processo iterativo x_n \doteq A(x_{n\,-\,1}),\,n \geqslant 1, converge para \xi: x_n \longrightarrow \xi, sendo \xi o ponto fixo de interesse.
Provemos, então, o teorema, para que na próxima postagem possamos apresentar uma aplicação na resolução de um PVI.

Como na maioria das vezes, a unicidade é muito mais fácil de ser demonstrada, sendo, portanto, relegada para o final.
Sendo A uma contração, sabemos que existe K \in [0,\,1) para o qual d(A(x),\,A(y)) \leqslant K\,d(x,\,y). Sendo x_0 \in X arbitrário, definamos a sequência x_n \doteq A(x_{n\,-\,1}), n \geqslant 1, de forma que é suficiente provarmos que (x_n) é uma sequência de Cauchy, já que X é completo.
Observemos o seguinte:
d(x_2,\,x_1) \leqslant K\,d(x_1,\,x_0),
d(x_3,\,x_2) \leqslant K\,d(x_2,\,x_1) \leqslant K\,(K\,d(x_1,\,x_0)) = K^2\,(x_1,\,x_0),
d(x_4,\,x_3) \leqslant K\,d(x_3,\,x_2) \leqslant K\,(K^2\,d(x_1,\,x_0)) = K^3\,d(x_1,\,x_0),

Em geral, verifica-se por indução que d(x_{n\,+\,1},\,x_n) \leqslant K^n\,d(x_1,\,x_0) (I).
Agora, para m,\,n \in \mathbb{N}, podemos reescrever a (I) acima, por intermédio da desigualdade triangular (d(x,\,y) \leqslant d(x,\,z) + d(z,\,y), para quaisquer x,\,y,\,z \in X), como
d(x_m,\,x_n) \leqslant d(x_m,\,x_{m\,-\,1}) + d(x_{m\,-\,1},\,x_{m\,-\,2}) + ... + d(x_{n\,+\,1},\,x_n)
\leqslant (K^{m\,-\,1} + K^{n\,-\,2} + ... + K^n)\,d(x_1,\,x_0)
= K^n\,(K^{m\,-\,n\,-\,1} + K^{m\,-\,n\,-\,2} + ... + 1)\,d(x_1,\,x_0)
= K^n\,(\sum\limits_{r\,=\,0}^{m\,-\,n\,-\,1} K^r)\,d(x_1,\,x_0).
Agora, como \sum\limits_{r\,=\,0}^{m\,-\,n\,-\,1} K^r \leqslant  \sum\limits_{r\,=\,0}^{\infty} K^r, em virtude da convergência da série geométrica, \sum\limits_{r\,=\,0}^{\infty} K^r = \frac{1}{1\,-\,K}, podemos escrever d(x_m,\,x_n) \leqslant \frac{K^n}{1\,-\,K}\,d(x_1,\,x_0)\leqslant \frac{1}{1\,-\,K}\,d(x_1,\,x_0), pois K < 1.
Como \frac{1}{1\,-\,K} torna-se arbitrariamente pequeno, dado \varepsilon > 0 qualquer, existe N \in \mathbb{N} para o qual d(x_m,\,x_n) < \varepsilon sempre que m,\,n \geqslant N, o que verifica que (x_n) é de Cauchy.
Enfim, pela completude de X, colocamos \xi \doteq \lim\limits_{n\,\longrightarrow\,\infty} x_n \in X, de forma que, pela continuidade de A,
temos \xi = \lim\limits_{n\,\longrightarrow\,\infty} x_n =  \lim\limits_{n\,\longrightarrow\,\infty} A(x_{n\,-\,1}) = A( \lim\limits_{n\,\longrightarrow\,\infty} x_{n\,-\,1}) = A(\xi).
Fica, dessa forma, demonstrada a existência de um ponto fixo \xi para A.

Para a unicidade, suponha que \xi' é outro ponto fixo de A, de forma que d(A(\xi),\,A(\xi')) \leqslant K\,d(\xi,\,\xi') nos dá d(\xi,\,\xi') \leqslant K\,d(\xi,\,\xi'), i.e., (1 - K)\,d(\xi,\,\xi') \leqslant 0, o que resulta em d(\xi,\,\xi') = 0 pois 1 - K > 0, e segue o resultado. □

Para aplicações do teorema, podem ser úteis os livros
Fundamentos de Análise Funcional, dos autores Botelho, Pellegrino e Teixeira,
Introdução à Análise Funcional, de César R. de Oliveira, bem como
Postmodern Analysis, de Jost, e Aplicações da Topologia à Análise,
de Chaim S. Honig.